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O silêncio
Meu nascimento - FRIDA KALHO |
Quando
eu nasci, saí de dentro da minha mãe pesadamente e levei alguns segundos para
entender que não habitava mais seu interior úmido, e ao entender isso, percebi
que deixara da escuridão quente e aconchegante para um exterior claro, frio e
estranho.
Ao reconhecer esse novo mundo que antes era apenas um mito, eu chorei. Soltei meu grito pelo mundo como forma de expressar minha revolta e meu pesar. Não podia aceitar a responsabilidade de existir, de ter que encarar uma realidade que eu sentia, estava no ar, impregnava tudo, seria dura.
Ao reconhecer esse novo mundo que antes era apenas um mito, eu chorei. Soltei meu grito pelo mundo como forma de expressar minha revolta e meu pesar. Não podia aceitar a responsabilidade de existir, de ter que encarar uma realidade que eu sentia, estava no ar, impregnava tudo, seria dura.
O
mais difícil, além de respirar fora da minha mãe, era olhar todos aqueles
rostos e ouvir todo aquele barulho. Por que pareciam tão falsamente felizes?
Será que não entendiam o que estava acontecendo? O que havia acontecido? O que
iria acontecer?
E
eu chorava.
Chorava
porque queria voltar, não dava mais tudo isso. Eu não quero a vida. Quem pediu
pra me tirarem de lá? Aquilo não estava certo, eu só queria chorar e chorei
mais ao ouvir meu pai mandar minha mãe calar a boca pela primeira vez. E chorei
de novo ao ouvi-los discutindo sobre quem gastou o que, e chorei novamente ao
perceber que os dois se silenciavam, mais ele a ela, que silenciada não
percebia a vida medíocre que levava.
Eu
continuava chorando, enquanto me chacoalhavam daqui e de lá, como se
chacoalhando eu fosse fechar a boca. Entendam, essa não é uma coisa que dá pra
comprar com um simples chacoalhar, não dá pra comprar.
Viu?
Desde cedo nasci sendo comprado o meu silêncio. Eu sabia o que aconteceria
depois no decorrer dos meus anos, as histórias que os fetos trocavam entre si
sobre o mundo fora da barriga da mamãe. Eu não queria.
Mas
aconteceu. E eu chorei.
Compravam
meu silêncio com doces, toma aqui meu
filhinho, um real pro sorvete! Com brinquedos, com bichinhos esquisitos. E
quando eu cresci, que aprendi a lidar com o choro, que sabia que chorar não
podia acontecer da mesma forma que eu fazia quando ainda era criança, me
calavam com presentes pra adolescente, com tempo na internet, com um dinheiro
no final do mês, e quando essas coisas não davam conta, usavam com natural
espontaneidade um cala a boca e vai pro
seu quarto antes que te dê uns tapas.
Agora
eu não chorava naquele sentido de antes ao ver o mundo medíocre da minha mãe, e
a hipocrisia do meu pai (e até dela por aceitar a vida daquela forma), eu
ignorava por fora.
Tudo
pelo silêncio.
E
ainda sorriram quando eu saí de dentro da minha mãe.
Lembro
de pensar, anos atrás, que talvez todos
aqueles sorrisos fossem porque minha mãe finalmente se livrara daquele parasita
que modificara seu corpo e roubara seus nutrientes. E meu pai ria para não
chorar, finalmente havia saído de dentro da sua mulher mais uma boca pra
alimentar, mais um parasita pra sugar seu dinheiro, o culpado por todos os
defeitos do corpo dela que ele enumerou várias vezes muitos anos depois. Talvez
tenha sido exatamente isso.
Tudo
isso que se chocava com o mundo que me calava, enquanto eu só queria voltar pra
dentro da mamãe.
Eu
observava aquele mundo com olhos de retida solidão e raiva, e havia dias que a
raiva aumentava tanto dentro de mim que eu arquitetava planos para resolver
tudo aquilo. Então aconteceu. Um dia decidi deixar a vida e buscar o
silêncio não mais mandado, mas posto como meu, e de onde me tiraram a força.
Planejei
os detalhes e esperei a semana que meu pai viajava com os supostos amigos do
trabalho e ela ficava sozinha em casa comigo.
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Um bebê nascendo na água é uma das pinturas de Amanda Greavette |
A
porta bateu atrás dele e do seu tchau
pessoal, e meu coração começou a acelerar incrivelmente rápido. Sabia
exatamente o que deveria fazer, e sem delongas caminhei sorrateiramente até a
porta do quarto dela, onde assistia um programa silenciador de tv, e a observei
por entre a fresta.
Busquei
dentro de mim as razões para o que estava prestes a fazer e entrei. Lembro
apenas dos seus gritos, do seu desespero, e do seu olhar, que pela primeira vez
não era silenciador, pela primeira vez me reconhecia como um ser não
silenciável, e foi aí, que talvez, lhe surgira forças para pegar aquela faca, e
golpear, e continuar a golpear, de novo, e de novo, e de novo, até meu sangue
espalhar sobre o tapete que outrora ela gritara para que eu não derramasse o leite, e escorreu quente e grudento pelo seu rosto, e respingou em sua boca. E
de novo, e de novo, e de novo, ela silenciada me esfaqueava e eu não sentia
dor, pois naquele momento ela estava consciente do mundo, do que ele fazia com
as pessoas, e eu havia plantado minha semente.
Eu
a tinha libertado.
Depois
de alguns meses, comigo já dentro da cova que me foi destinada a partir momento
que a luz do mundo brilhou sobre meu primeiro grito choroso, minha carne
tremeu. Com a semente plantada, eu sentia a sorte dos meus próximos meses
dentro do aconchego quente e molhado da barriga da minha mãe.
O
mundo finalmente estava perfeito de novo.
Mirian Kardoso
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