O menino do quarto ao lado


Era alta lua quando ela o ouviu pela primeira vez atrás das paredes da casa velha de seus pais. Primeiro o miado, depois a tosse, que passou a ser constante, mas algumas vezes havia uma pausa entre uma e outra, e se podia escutar uma voz fina, baixa, sussurrando uma história boba de algum livro bobo.

Mas o que mais a atraia era o tom sonhador da voz, que parecia entrar no coração e esvair-se pelos poros da pele. Toda noite, no mesmo horário, a tosse parava junto com o miado, havia sussurros e logo começava aquela voz sussurrante acompanhada da história. E toda noite, no mesmo horário, eu virava para o canto,  colando meu ouvido na parede quente.
Com o passar do tempo, a única coisa que eu queria era escutar aquela voz fina e rouca, e imaginava as histórias por trás do garoto. Quantos anos poderia ter e o porquê de não sair nunca de casa. Eu não sentia pena dele, ele era envolto em uma áurea de mistério, e isso me deixava com a imaginação a mil.
Então, um dia, sem querer dei duas batidas na parede do quarto e a voz silenciou por alguns segundos, depois voltou a narrar. Me assustei levemente com a reação, e na outra noite planejei esperá-lo começar a falar para então bater novamente, mas dessa vez parecia que ele narrava pra mim. Fiquei em silêncio, esperando o final.
O mesmo ocorreu durante as próximas noites, quando finalmente no final ela ouviu um tímido boa noite, e apesar do segundo susto por não esperar aquilo, sorriu e respondeu. Aguardei ansiosa pela outra noite e quando aconteceu foi muito interessante a sensação de ter a resposta das batidas.
Oi. Ouvi a voz tímida. Oi, ela respondeu.
Demorou alguns minutos enquanto ela escutava o relógio bater. Quando ele não respondeu, resolveu continuar. Qual é seu nome? Du , sussurrou, e você? Lana.
A partir disso nada mais foi dito, ficamos em silêncio, escutando a existência um do outro. Será que era isso que compensaria tudo que imaginara? Foi essa rotina sem graça nos outros dias, apenas os monólogos se repetiam, e não havia coragem de ambos lados para continuar. Foi então que decidi ir por um caminho diferente.
Pediu dinheiro ao pai e comprou um livro dos peixes no mar, além de alguns chocolates. Deixou uma cesta diante da porta da casa ao lado e se escondeu atrás da árvore alta e tão verde que cantava em frente a casa, esperando ver quem iria pegar. Infelizmente esperei durante horas, mas em vão.
No outro dia, eu vi a cesta ainda na porta, e ressabiada, rodeei por algumas horas, atravessei de frente pra trás e trás pra frente a rua, que quase a sola dos meus sapatos velhos descolaram. E se alguém parasse para observar, veria que por onde ela passava, havia um pequeno rebaixamento no chão.
Mas algumas horas depois ela tomou coragem e encarou a porta com a cesta em baixo. Imediatamente a distância entre eles foi lançada e intensificada, era como olhar dentro de um poço. Daquele que chegava na China: era olhar por ele e ver lá longe o seu destino. Engoli em seco, e com um pouco de coragem dei o primeiro passo. Com mais um pouco caminhei até a China, por um tempo intenso e tenso, que prendeu um nó lá no fundo do estômago, esmagando meu intestino, local onde, dizia minha avó, grudava o chiclete que eu engolia, esse era o tempo que me pareceu longo de mais.
Fiquei ali, sob a aresta da porta, encarando a porta, pensando na porta, e tentando respirar coragem para bater na porta. Foi nesse momento, entre meu respirar e a coragem que a porta se abriu. Como por mágica, como por encanto, como por força do pensamento. E a respiração, que deveria ser meu ato de coragem, congelou bem lá no fundo dos pulmões e se agarrou firme, pra não sair.
Um braço  branco, acompanhado de um corpo magro e branco, e acrescido de um rosto fino e triste, que vertiam aquilo que eu não gostava muito, levou alguns segundos para perceber aquela figura pequena e ansiosa a sua frente. Tempo suficiente, tempo entre abrir e rolar da lágrima, tempo entre se agachar e abraçar aquela figura infantil e assustada.
Lá dentro, meio escuro e meio claro, ela conseguia ver: um corpo grande abraçado a outro pequeno, enquanto o grande tremia, chorando sobre o pequeno estático. Eu, ali, tentava entender porque aquele corpo branco tremia sobre mim.
Na minha inocência de criança levei mais que alguns minutos pra compreender. Levei um dia, talvez mais. Talvez a vida inteira. Depois que o corpo branco e grande parou de tremer, olhei curiosa por cima de seu ombro e tentei perguntar. O que aconteceu? Mas a resposta ficou no ar, esquecida e apagada. Assim como a minha cesta com o livrinho dos peixes do mar e os chocolates.
O corpo branco foi a um carro estacionado em baixo dos galhos da velha  árvore que não parecia mais assim tão verde e nem cantava, e eu fiquei. Assim, só fiquei. Não sabia o que fazer exatamente, mas achei muito estranho e talvez um desperdício largar a minha cesta ali.
Ela pegou a cesta e deu as costa à casa que tremia ao lado da sua, e meio bamba no andar, chegou a sua porta no que pareceu segundos. Correu para o quarto e esperou. Ocasionalmente olhava a casa trêmula, onde esperava ver o corpo grande, branco e de mulher chacoalhar, como o vento no fim da estação, para fora da casa.
E o que eu fiz foi esperar. Esperei até o momento do miado e da tosse, que para minha primeira angustia da vida, não veio. Esperei mais, esperei até achar que a tosse tinha se curado, mesmo que lá no fundo a verdade gritasse, como mamãe gritou ao descobrir que arranquei a cabeça das bonecas de porcelanas dela, e eu disse que não fora eu.
 Quando ela não veio, virei para o canto, abri meu livro de peixinhos e li. Li algumas vezes aquela noite, no pensamento e em voz alta, e guardei o chocolate para o outro dia, porque daquela vez, sem saber exatamente o porquê, um nó estranho dentro do meu estômago e no fundo do meu coração, me tirava a fome, e a única coisa que eu queria era ouvir a tosse.
Não sei exatamente o que aconteceu naquele dia, e se eu soubesse não falaria em voz alta, porque minha vó dizia que se eu falasse alguma coisa que era verdade em voz alta, virava verdade de verdade. E eu não queria que aquela dor gritante no fundo do meu coração, gritasse aquela coisa que não podia ser verdade.
A única coisa que fiz no outro dia foi perceber que, pra minha infeliz sorte, eu não tinha desvendado os segredos, mistérios e aventuras que me aguardavam do outro lado da parede. E imaginei mil histórias onde Du não era o Du, era um garoto viajando na lua, com seu amigo gatinho corajoso e sabe-tudo. Talvez seja isso que ele tenha feito, talvez por isso ele parou de miar, tossir e de me responder lá do outro lado do quarto. Talvez ele tenha ido viver as aventuras que lia.



                                                                                                         MirianKardoso

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