A REVOLUÇAO

-Atenção todos os usuários, as atividades se darão por encerradas no fim do dia. Estejam atentos, pois é perigoso permanecer dentro do prédio após o toque de recolher.
Aquela voz ficava repetindo incessantemente a mesma coisa, durante todo o dia. Era melancólica, lenta, pausada, embriagada e dava sono em quem ouvisse. Um contraste brutal com o movimento insano vindo de dentro do museu, um entra e sai de crianças e adultos alvoraçados querendo ver, tocar e sentir as anomalias da natureza.
Se olhássemos de cima àquela confusão toda, de uma distancia relativamente grande, não enxergaríamos nada anormal, fora do comum ou intrigante.  Entretanto, se chegássemos mais perto, perceberíamos que as pessoas comuns nem de longe eram formas uniformes, nenhuma tinha a exata e mesma aparência ou defeito, como for de mais interessante chamar. Em algumas não existiam os orifício bucal, mas outras as possuíam duplicadas em mais de cinco ou eram minúsculas. Braços em lugar de pernas, pernas no lugar de braços. Bocas na nuca, e abaixo dos olhos outros três que reviravam nas órbitas, sem parar.
Algumas não tinham pescoço, da cabeça colada junto ao tronco escorriam fios de cabelos pegajosos. Podia-se observar que das bocas de algumas saiam línguas duplas, e dessas, divididas em outros grupos, havia dois dentes podres apenas, ou, como a ativista excêntrica chamada Vic, que tinha 1465 dentes e 25 anos. Mas, também, havia as que do orifício bucal não entrava comida, ao contrário, era por onde saia.
Essas pessoas entravam pelas portas do museu e paravam, embasbacadas com a deformidade dentro das vitrines. Coisas horrendas de ver, de imaginar, não se pensava na possibilidade de alguém nascer daquela maneira. Muitos dos espécimes do museu provinham de pais que, não aguentando ver a deformidade do filho, os entregava ao Instituto Mundial da Deformidade, na esperança de ter um tratamento.
Vic parou em frente a espécime que mais gostava. Era uma peça rara, sua cor pendia para o marrom escuro, tinha um tórax trabalhado, um pescoço e sobre ele uma cabeça meio redonda, meio oval. Nela, que coisa estranha, pensava ela, existiam dois olhos de formatos iguais, entre meio e logo abaixo dos olhos uma saliência com dois furos que aparentemente era por onde respirava, e dessa saliência um orifício perfeito e carnudo que ao se abrirem era possível ver duas carreiras alvas de dentes, nas laterais havia aquilo que ela lia como o aparelho auditivo.
Se isso não bastasse de estranho, logo ao lado dos ombros, pendia de cada lado somente um braço e no fim deles, cada um possuía uma única mão com cinco dedos. E ainda andava sobre duas pernas com um pé apenas em cada uma!
Vic olhava para ele e pensava na solidão que era viver ali, sendo motivo de riso, ignorado pela sociedade e jogado de canto. Que culpa teria o pobre coitado ter nascido tão mal formado?
-De certo – Diriam os pais de Vic. – os pais desse infeliz eram homens contrários a sagrada religião. – inflamariam suas vozes - Pecadores infames dos quais nasceu essa aberração, como castigo vindo dos céus!
-Que nojento. – ouvia de um observador sábio e profundo.
-Que animalesco. Chega a pender para o suprarealistico da ficção televisiva. – Dizia um literato.
-Olha só isso. – Falava uma mãe a seu filho. – é o que acontece com crianças que não se comportam!
-Incrível como a desordem humana e suas dificuldades e miscigenação homogênica da genética pode criar. – Sussurrava de um para outro, alguns médicos.
Vic continuava ali. Somente observando.
Qual seria o futuro dele? Será que iria morrer trancado atrás daquela vitrine, sendo alvo daquele olhar de lado, e ouvindo aquelas coisas o dia inteiro?
Pobre ser.
Não tivera culpa por nascer assim. Que culpa teria? Seria Deus assim tão ruim para que descontasse nos filhos a maldade dos pais? Os pensamentos de Vic vagavam assim, enquanto ela buscava uma explicação racional e complacente para a diferença tão grande na aparência entre eles, os seres normais, e aqueles que nasciam com aquela doença.
Ela virou o corpo, foi até o centro e observou a sua volta, no semicírculo do salão onde estava, via vários vidros contendo seres com o mesmo defeito. Notavam-se apenas algumas diferenças entre eles, alguns eram mais brancos e outros mais escuros. Alguns mais altos e outros mais baixos. Além, também, a diferença de idade.
Ela parou em frente a vitrine que exibia um bebe:
-Vocês viram no jornal? Os médicos deram um nome para a doença.
-Vi sim. Ignoriantis Deformantae Mentalis. A tal da IDM.
-Coitados. – suspirou um. – minha mulher quer ter filhos. Mas já disse a ela que sem um exame completo não me arrisco.
-Está certo. – respondeu, pateticamente. – nenhuma criança merece nascer assim.
-Verdade.
Vic observava com tanta tristeza. Como poderiam dizer aquilo? Ela precisava pensar em alguma forma de ajudar aquelas pobres criaturas. Criaturas não. Eram pessoas! Certa revolta começou a se formar dentro dela. As pessoas pregavam tanto sobre igualdade. Cadê ela?
Vic estudava em uma universidade e se sentasse com alguns colegas e professores, com certeza conseguiriam levar essas questões a publico! Imediatamente veio-lhe a mente ideias para ativar o direito dessas pessoas como cidadãos normais, iguais aos outros.
Naquela mesma noite levantaria a questão em sala de aula. Tinha certeza que muitos outros abraçariam a causa, portanto não seria difícil conseguir elevar a nível internacional as reinvindicações.
Assim fez Vic.
Naquela noite a turma discutiu os direitos de igualdade  e de liberdade. Com voz alta declararam: aqueles que sofriam de IDM eram pessoas como qualquer outra, indiferente da aparência, cor, idade e sexo! E por causa da Vic e sua intensão, o movimento ganhou força. Foi jogado nas redes sociais, compartilhado, curtido e discutido em rede internacional. Foi motivo de passeatas, discussões, leis e brigas. Mas finalmente os IDMs foram considerados humanos.
Alguns anos se passaram, Vic se casou. Estava feliz e resolveu ter um filho. Deitada na cama decidiu juntamente com o marido:
-Não sem antes fazermos um exame completo.
Mas por obra do acaso nasceu uma criança com IDM. Vic sentiu certo aperto. Certa dificuldade em acreditar, mas amou seu filho.
 Algumas décadas depois eram tantas as pessoas com a tal IDM, que a porcentagem de nascimento de pessoas normais estava reduzida a quase 15 por cento. Os IDMs casavam entre si, ampliando a sociedade de homogêneos com pouca heterogeneidade.
Assim foi indo até que algumas centenas de anos mais tarde os IDMs não existiam como IDMs. Eram os humanos normais. E da linhagem tão e tão distante do sangue de Vic nasceu uma criança, com uma síndrome, síndrome porque foi assim que passou a serem chamadas crianças que nasciam com aparência diferente das outras, e essa síndrome deformava o rosto da criança da linhagem de Vic.
Essa criança foi amada pelos pais, tinha toda atenção da família e era feliz. Entretanto a sociedade havia descoberto outras formas de colocar as pessoas na vitrine, e por causa do padrão pré-estabelecido de beleza, a criança sentiu muitas vezes aquele olhar:
-Como você é feia.
E a sociedade continuou evoluindo em sua homo-heterogeneidade de liberdade e diversidade, sempre encontrando uma forma sutil de enquadrar o ser humano.
                                                                                               MirianKardoso

                                                      (À Vitor. Pela beleza de sua síndrome)








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